"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

quinta-feira, julho 02, 2009

Despudoradamente Pulsante


Um homem lindo
desnudou sua alma para mim
a ponto das minhas vestes
me trazerem pudor.
E foi como se a vida inteira
nos viesse preparando
para o instante do desnudamento.

Pulsa, a existência pulsa
em cada ser vivente.


Peles acolheram pesares,
despertaram sentidos outros.
Tocaram-me as mãos mais doces
do universo. E másculas.
Encheu-se meu corpo d´um amor
Puro, Lascivo, Transbordante.
Para além de tristezas,
havia Beleza, havia Delicadeza profunda
de Alma.

Generosa, a Vida singelamente sabe Ser.


terça-feira, fevereiro 24, 2009

Pequena minha

Hoje, só hoje
quero ser a mais bonita
Ternura e graça
Quero sambar
Um riso brejeiro
um dengo, um chamego
amigos, amores
por todo lugar
Só hoje eu não quero chorar.
Leveza e dourado
poço de água
de água cheirosa
de água quentinha
onde o meu ventre estancado
se encha de cores e possa criar
É hoje, só hoje,
que peço licensa,
que peço passagem
p´ra minha doce pequena
oxum mãe menina
p´ra frente passar.

Preta Velha

Preta, minha preta velha
Mãe pretinha minha
Desce comigo às entranhas
dessa nossa existência.
Se graça faz
o meu medo do escuro
o meu medo assombroso
do escuro
apesar dos tantos anos...
Se velha sou
mas sigo soberba e pueril
a tudo julgar, a tudo querer...
E se a sabedoria sua,
mãe pretinha minha,
eu teimo em não acolher...
Desce comigo esse poço
que tá escuro
que tá gelado
que tá quente demais!
Juro, juro,
é só até eu me acostumar

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Cheiro de esteira


Se o sol ensolarasse
e a lua aluecesse
e tudo o mais
fosse apenas tudo o mais
... ai, meu Deus!
Como seria muito mais simples
essa nossa existência!

Poemeto infantil


Duas casinhas de pedra sem telhado.
Mataram o cachorro que estava com raiva.
Poderia ter sido eu, mas eu não sou cachorro.
Posso ser cachorra, mas cachorro não.
As casas estão na minha varanda
e formigas passeiam por elas
mas não entram.
Portas e janelas de palito de picolé
- quem me dera uma casa assim!
As portas não abrem
e eu não posso entrar
mesmo sendo do tamanho delas.
Meu coração é grande
e não cabe em qualquer lugar.
Cabe, sim, muita gente no meu coração.
Quando fico zangada, expulso todo mundo.
Tem gente que se chateia
e nunca mais quer entrar.
Coração amiudece e se molha todo.
Vixe Maria!
Cresce de novo pra festa recomeçar,
ô coraçãozinho meu!

sábado, fevereiro 07, 2009

Delírio de um futuro breve

Como se me beijassem o ventre
e eu me entregasse toda
ao deleite nosso.
Como se brotassem flores
e flores e flores
do umbigo meu
e minha carne se fizesse doce
se fizesse chama.

Quase como se eu tocasse o amor
e isso me fizesse bela
e isso me abrisse as pernas
para lá de mim.

Gostoso como escutar o silêncio.



quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Corpo em poema

Se eu pudesse escrever meu corpo
talvez fizesse uma poesia satírica.
Dura, estilhaçante, apaixonada.
Cantaria a mágoa e a revolta
daqueles que não têm outra opção
a não ser uma batalha permanente.
E nunca silenciam,

Viria num livro rasgado
cheio de ira pelo cor-de-rosa que foi
e de ansiedade pelas cores que poderá ser.
Algo entre a descoberta e a decreptude
entre um soluço abafado, solitário
e um grito de libertação e encantamento.
Sem a métrica-sofisticação da arte-pela-arte.
Poema de rua, Samba, Cordel
p´ra gente de peito aberto
e olhos que buscam sentidos.
Poema p´ra ser cantado, dançado em roda,
declamado em manifestações.

Ou talvez fosse simplesmente
uma carta de amor à humanidade.
Delicado pedido de aconchego e silêncio.
A busca de um canto no mundo,
miudinho que seja,
onde não seja preciso brigar para ser.
Mãos brincantes. Argila.
Amigos. Amigas. Amores.
Ombro para recostar. Partilha.
Acho que assim seria meu corpoema.


(escrito em 29.11.08)

De mim, saudade.



Ontem quase queimei todas as cartas
da caixa azul
do alto do armário.
Mas antes de queimá-las
ousei abri-las
e lê-las.
Fiquei com elas.
De mim, saudade.

Pétalas de flores
dum tempo em que eu era capaz
de guardar pétalas de flores
com bilhetes e ingressos de festivais.
De mim, saudade.

É verão, a cidade sorri
enquanto eu me acinzento.

Ela me olhou
e me desmontou toda
quando mostrava, quase sem mostrar,
a janela, o samba, a rosa
quando me dizia, quase sem dizer,
que a vida tem muitas cores
e pede mais.

Então ela saiu, quase sem sair.
A janela para abrir.
Tantas coisas por pintar.
E eu, num medo danado,
debaixo do cobertor.
Com saudade do que fui
e do que nem cheguei a ser.
De mim, saudade.

terça-feira, novembro 04, 2008

O encontro das luas

Sete luas têm no meu planeta. Sete é meu número da sorte, e sempre que preciso apostar em um número, vou certeira. Nunca parei para pensar se dá certo ou errado, isso não importa. É uma espécie de amuleto esse meu sete.

Pois bem, sete luas têm no meu planeta, mas houve uma noite em que não apareceu nenhuma. Deve ter tido encontro de luas num reino distante, regado a vinho, música, confidências e confabulações, pelo menos assim me contaram os mais antigos. Sei que ninguém avisou, e o céu ficou todo escuro, e todo mundo achou tudo muito estranho, e foi então que a gente se deu conta de que havia sete luas no planeta.

Nessa noite, escutei, como quem não quer nada, uma conversa da velha feiticeira com um aprendiz. Disseram que elas se cansaram de ser apenas lua, sempre ali no mesmo lugar, todas as noites, de um lado a outro do céu. Se cansaram de apenas iluminar a escuridão e ser inspiração para poetas, amantes e pesquisadores. Queriam criar, ser mais, e foram inventar outros lugares para as luas. Inventaram, inventaram e subverteram tudo. Viraram o mundo de cabeça pra baixo só porque resolveram se encontrar.

Sei que o dia seguinte amanheceu ainda mais esquisito, engraçado de doer. Toda a gente olhava pra tudo meio desconfiada, e parecia que as coisas e as pessoas haviam mudado de cor. E à noite, quase que se escutava riso de lua por toda parte.

Desde aquele dia, todos os dias, próximo ao entardecer, não há uma só pessoa que não se pergunte se aquela noite aluará.

sábado, novembro 01, 2008

Da amizade



Afeitar-se ao afeto.
Arte de se deixar tocar
e tocar fogo, luz, perfume e terra.
Mão na mão. Graça.
Ombro, colo, silêncio
briga e música.
Afeto.
Afeito a se deixar ser o que é
no, pelo, com o ser outro.
Feixe de dia pela janela:
convite feito à sedução e luta
e entrega.
Tocar(se).
Trocar sentidos e abraços. Ir além.
Impossível precisar quem dá e quem recebe.

E a solidão é apenas mais uma possibilidade
entre tantas e tantas e tantas partilhas.

domingo, outubro 19, 2008

A Política e a Poética


Eram gêmeas. Siamesas. Mas de um modo jamais visto. Na verdade não se sabia se ali havia um par de pernas que se bifurcavam em dois troncos, quatro braços e duas cabeças ou se as duas cabeças compartilhavam as mesmas pernas. Também não era possível saber qual das cabeças era a verdadeira dona, a dona primária, das pernas e qual era a intrusa. As duas enviavam mensagens, comandos às pernas, às vezes na mesma hora. E as pernas, ah, as pernas ficavam tão perturbadas com isso que chegavam a agir por comando próprio, o que inquietava por demais as cabeças.

Bom, a confusão começou porque as duas cabeças eram completamente diferentes uma da outra. E quase sempre não havia jeito de entrarem em acordo. A da esquerda pensava, pensava e pensava. E por isso achava que estava sempre mais certa que a outra. Sabia exatamente o que queria, era firme e enfática, por vezes dura. Para tudo tinha explicações, argumentos tão bem delineados que convenciam mesmo. E não fugia dos embates. A da direita, ah, esta era mais doce, quase infantil, buscava cantinhos silenciosos e gente amiga. Havia dias em que ela acordava tristonha sem nenhum motivo e se punha a chorar, chorar, escrever coisas sem utilidade alguma para ela ou para a humanidade. Isso deixava a da esquerda possessa, irritadíssima. Não há tempo a perder com futilidades e coisas sobre as quais não temos qualquer poder! Mas a da direita não se importava com essa questão e ficava ofendida, com muita raiva da da esquerda, que não respeitava o seu tempo.

E assim viveram durante anos. Havia quem dissesse que não sobreviveriam por muito tempo. Seria preciso cortar uma das duas cabeças para que a outra pudesse viver – disseram os médicos. Mas ninguém, ninguém mesmo, tinha coragem de definir qual seria morta e qual sobreviveria. E assim elas foram vivendo. Elas, ou ela, porque ninguém sabia se deveria usar o singular ou o plural para se referir àquela criatura. As duas cabeças brigavam, brigavam, e era terrível, porque não podiam se separar nem por um minuto para esperar ficar tudo bem novamente. E o par de pernas, às vezes, sapateava sozinho da direita à esquerda à direita à esquerda até cansar, cambalear e cair no chão. Chega! – gritava. E ia pra frente, pra trás, pra qualquer lugar por sua conta e risco. Corria, corria, corria para não dar tempo das cabeças se intrometerem e quererem assumir o comando.

Sei que já beirava – ou beiravam – os trinta quando decidiu – ou decidiram – que daquele jeito não dava. Todos os sábios, os reis e os curadores da região foram convidados a propor uma solução para esse problema. "Haverá uma grande roda, todos serão ouvidos e dali ninguém sai sem que sejam tomadas as devidas providências". Não houve quem não aceitasse o convite. Teve gente que veio de longe só para a ocasião. Teve gente que, julgando-se sábio, ou rei, ou curador, ficou ofendida por não ser convidada.

O fato é que a roda será amanhã. Começará uma hora após o nascer do sol no morro mais alto, à beira do rio mais cristalino já encontrado naquelas bandas. E hoje, hoje o par de pernas e as duas cabeças foram se deitar cedo. A Política, da esquerda, pôs-se a ler um livro enorme, Tratado sobre o direito dos homens e das mulheres, e a formular argumentos, pois era assim que ela se encontrava. A Poética, da direita, preferiu passar a noite escutando cirandas, porque assim alcançava o silêncio de que precisava em noite tão especial. As pernas adormeceram rapidinho e nem se moviam. A da direita não gostava nada, nada daquele livro pesadíssimo, inquietante, pois sabia que as respostas essenciais não são encontradas em livros, muito menos nos daquele porte. A da esquerda achava enfadonha aquela música repetitiva e a letargia da da direita, porque lhe angustiava em demasia todas as coisas do mundo que eram muito pior do que poderiam ou deveriam ser e sabia que precisava, com urgência, fazer algo de outro modo.

Mas dessa vez elas se olharam com ternura. Desejaram-se boa noite com um beijo, viraram-se cada qual para o seu lado. E essa noite não houve briga.

Da Intuição


Desde menina
nas andanças em terraços,
playgroudings e terrenos baldios
aprendi a desconfiar de sentimento.
Coisa esquisita essa!
Sempre nos leva aos lugares-comuns
conhecidos e indesejáveis.
Há que pô-lo em questão.
Dissecá-lo. Decifrá-lo. Digeri-lo.
Sentimento é coisa forte.
Ressurge dos buracos mais inusitados
E nos corta os braços,
ferve o rosto,
bambeia as pernas.
Mas se fecho os olhos,
deixo-me inundar em suas palpitações,
mistérios sem respostas.
E se depois olho adiante,
tomo os retalhos na mão
para tecer o curso por onde vou.
Então sentimento é bicho amigo
e às vezes há que escutá-lo
e calar, e calar, e calar.
Para saber de verdade por onde ir.
Assim me contou um passarinho.

sábado, outubro 04, 2008

Da existência




Um espantalho passou por mim ontem à tarde
e balançou minhas estribeiras.
Achou muita graça de mim,
que buscava a perfeição.
Achou graça do desprezo que eu tinha
pelas coisas precárias do mundo.
Gargalhadas de compaixão
e fui ficando pequena, pequenininha.
Cruzei a pista para não vê-lo.
Que audácia, esse espantalho!
Fazer graça de mim que a ninguém incomodo!
Sei que passei a noite todinha
sonhando com o danado,
que ria e se balançava,
todo palha que era.
Depois me pôs no colo
contou histórias de aventura
do tempo que o Brasil nem era Brasil.
Era velho o espantalho, sabia das coisas.
Brincamos de capitão, roda, amarelinha,
cantamos também e foi gostoso demais.
Quando acordei, e vi que era sonho,
voltei à ruela onde nos encontramos.
Faz horas que espero por ele
com saudade do ruidinho da sua risada
com vontade de brincar com o precário
e tornar tudo grande, e tornar tudo bonito.
Faz horas e ficarei até o fim do dia
ou até que ele venha...
até que ele venha.

Seria tristeza?



E se há vazio em mim
Crio, Invento, Inverto
Faço-me bonita, mais
e rio.
Há água nos olhos?
Banho-me inteira
na terra baldia
detrás de casa.
Faço-me dura, firme,
cheia de idéias-verdades
Visto-me em jornais e trapos,
mas altiva
e danço
.

RESISTÊNCIA



Não há motivo para preocupações:
nunca seremos mais do que podemos.
Nem menos.
A vida segue na velocidade da luz
E algo aqui dentro resiste, não vai
afirma sua corporeidade.
Dai-me fluidez, dança e beleza
apesar de.
Dai-me acolhida -
Falta colchão, morada e flor
à precariedade que tenho sido
às ruínas-sem-trato que somos nós.
Às vezes, confesso, não entendo, meu Deus,
que diabos dá nessa mulher
para ainda assim pulsar tanto desejo.

domingo, julho 06, 2008

In-di-gestão



Vozes pirilimpam na cabeça e na boca
roubando o silêncio dos dias tais.
As mesmas perguntas martelam sem resposta:
Como transformar sentimentos?

A minha alma anseia por altos morros
cantinhos de silêncio, um aconchego
enquanto meu estômago
pulsa mesquinharias.

E as pedras e sapos engolidos pelos anos
resultam-me demasiado indigestos
para me deixar seguir.

Devoremo-los!

quarta-feira, junho 11, 2008

Redondamente eu

Enigma. Cores. Retalhos.
Útero. Óvulo. Flores abdominais.
Navalhadas no corpo
no de fora, no de dentro.
Navalheiro deglutido com voracidade
a retalhar desde o ventre
as redondas formas do ser.

Cabelos esvoaçantes
cortados pela raiz.
Vulva sertão-certinha
com desejo de mares.
Pêlos que querem eriçar.
Boneca-mulher civilizada
a doer no espelho.

Trompas. Tripas. Cérebro.
Pés, fibra
Mãos trêmulas abrem a caixola
p´ra que a boneca se vá.

E do espelho
quase se ouve, fininho,
o despertar d´uma voz

adoravelmente humana.

segunda-feira, março 24, 2008

Abstinência, meu bem, abstinência

Deus me tirou o chão essa noite
“Chão não é coisa necessária
para se andar”
Tem gente que voa
gente que nada
se arrasta por qualquer lugar.
Mas eu aqui, nesses dias diminutos,
estremeço, caio e babo
com a falta de chão para pisar.

E como não tem chão que me ampare
vou caindo, caindo sem fim
ante os olhares
tão exigentes, tão condescendentes
tão envergonhados, tão preocupados
comigo.
Cantinho de lágrima
no olho esquerdo.
Que serei de mim
que nos últimos dois anos
não tenho feito outra coisa
senão cair?
Cair, cair sem fim
e tentar me segurar
nos galhos secos que há.

O que eu tive
– patinho feio que sou,
peixe fora d´água –
foi overdose de família
nessa semana santa.

sexta-feira, março 21, 2008

Corpo de papel de seda


Eu me dissolvo em água
me derreto, me enxarco
e às vezes, só às vezes
é possível me enxugar
no pós temporal.
Nas outras, ai... nas outras
não tem peneira, nem filtro
não tem decantação
não tem ciência ou arte que dê jeito.
Eu me dissolvo em água
e não volto nunca mais.

Corpo-própio



O outro me invade o ser
por cada micro-furo
da pele
toma conta de mim inteira
me turbina, me adultera, me recria
como quer, e sem saber.
Me agrando,
me apequeneço
com a grandeza,
a pequenez do outro
E com a saída do outro
tento me reapossar
disso de mim que fui.
Mas para além do espelho
só vejo uma massa
disforme e sem nome de mim.
Que tenho sido eu, afinal?

terça-feira, março 18, 2008

História de uma docilização (ou sobre como sobrevivem certos femininos)

Quero meus demônios de volta!
E é pra já, é pra já que saio a buscá-los
Um por um, rodo os cantos do mundo
mas não desisto se não os reunir, todos
numa grande festa dentro de mim.

Os primeiros demoniozinhos
me foram arrancados com força
Tempo em que eu ainda reagia
"Não! é meu!"
E me debatia, esperneava.
"Deus não dá asa à cobra"
E eu que era cobra e tinha asa
teria que escolher.
Entre o ser e o não-ser
perdi cobra, perdi asa
e nem sei o que me tornei
Eu quero meus demônios de volta!

A brutalidade se sofisticou
"Medida de proteção, minha querida.
Precisamos proteger você e a sociedade
de tamanha periculosidade."
Até hoje não entendi
quem precisava se proteger de quem.
eram eles de mim? eu deles?
eles deles? Ou eu de mim mesma?
Entre desejos e medos,
sedativos falaram mais alto.
Mas quero meus demônios de volta!

"Se não tiver nada agradável para dizer, meu amor,
fique calada ou poderá machucar os outros"
Amor de mãe é de uma sabedoria...
sempre a nos evitar dores futuras.
Melhor obedecer.
E eu, que raramente tinha
"algo agradável para dizer"
me calei, me calei, me calei
até desaprender a falar.
Quero meus demônios de volta!

"Bravo! Bravíssimo!
Ela era tão petulante, tão questionadora
sempre a nos deixar em saia justa.
Mas agora está um primor,
aprendeu a aceitar a autoridade.
Nossos métodos educacionais são de fato um sucesso!"
Quero meus demônios de volta!

"Como você criou essa menina?
Quero que minha filha fique exatamente assim"
"Tão bonitinha, parece uma boneca"
"Tão inteligente, ela vai longe"
Elogios e elogios a me encherem de brio
daqueles que roubaram
ou tomaram com carinho
ou simplesmente aceitaram guardar
um por um, os meus demônios
"Tão legal, tão sensível, tão educada..."
tão, tão, tão, tão
Ah! Quero meus demônios de volta!

Castelos-cativeiros-encantados
desses com jardins, flores e música
para a gente até pensar que está livre
e esquecer de querer saber
o que tem do outro lado do mundo.
Temendo possíveis violências de roubos futuros
e já crendo na possibilidade do exorcismo
pedi, implorei ao primeiro ser que passou
que levasse meus últimos demônios sobreviventes.

"É uma paciente difícil. Muita resistência."
"Entre a obsessão e a histeria,
parece às vezes muito fóbica também"
"Fixação oral forte. E muita rigidez"
"Transtorno de ansiedade, seguro"
"Uma inquietação que não se justifica
por sua história de vida."
"É uma historiazinha desgraçada, vá lá,
mas precisamos produzir resiliência!"
"Tranquilidade, meu bem,
essa angústia diante do mundo
não vai te levar a lugar nenhum.
E ninguém consegue inventar diazepam
para a dor de viver.
Êta cienciazinha atrasada!"
"Seu caso, embora complexo, não é grave.
Nada que incenso, vela, ioga, terapia,
meditação, alimentação saudável,
fé, amor, vontade
e eventualmente um remedinho
não possa dar conta"
Arg! Eu quero meus demônios de volta!

Tristeza não é amargura, já disse Adélia.
Medo não é cuidado.
Compaixão não é amizade, nem amor.
E escrever pode aquietar minha alma
até amanhã de manhã
quando iniciarei minha volta ao mundo
para encontrar cada um dos demônios.
os demoniozinhos-traquinagem
os demônios-desejos, demônios-paixões
esses demônios-transgressões, demônios-artes
hão de aceitar o meu perdão e a maternidade
que não pude reconhecer na hora devida.
Teremos muitas festas e brigas

mas cuidarei deles com meu melhor amor.
Reapossada de vitalidade e força
talvez gargalhe de verdade

ao menos uma vez.
Só por isso já vale a pena
os meus demônios de volta!

Mas hoje, hoje mesmo
eu só quero um chocolate
que aqueça e adoce a minha alma.
A força é uma construção que requer calma
e companhias.
A volta ao mundo em busca dos demônios
pode durar uma vida toda
para essas mulheres docilizadas.
Um banho quente, uma noite de sono gostosa
e a disponibilidade real para o que está por vir.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Entre estrelas e olhos


Ah! Sempre pensei que a carne humana
- essa carne branda que temos-
é feita dos pedaços dos encontros.
Acho que cada pessoa
quando toca de verdade o peito da gente
- esse peito que abre e fecha ao sabor dos ventos-
deixa um punhado de carne.
E a carne vira matéria-prima da nossa (re)construção.

Quanto aos amores,
digo os amores de verdade,
por piores que sejam as dores
fruto da nossa incapacidade de vê-los em sua inteireza
ou de amar inteira e conscientemente o que vemos,
os amores-homens nos deixam estrelas.
Estrelas bem escondidinhas
no punhado de carne que nos jogam.
Há que se cavar para encontrá-las.

E eu, quatro estrelas tive na vida.
Quatro é um número bonito, par
sem a solidão do um
o antagonismo do dois
o jogo da triangulação
O quatro das estações, dos pontos cardeais, dos cantos do mundo
expande para o cinco,
que é o número de pontas de uma estrelinha,
dessas desenhadas a muitas cores nos cadernos das crianças.
Essas estrelas que trazemos no peito,
além de nos tornarem pessoas mais luminosas,
servem de guia nas noites blackouteadas
(acho que inventei uma palavra).

Minha primeira Estrela-adolescente
me ensinou a mergulhar fundo num outro ser humano
Foi com ela que aprendi
a compartilhar carícias e angústias
a questionar os pacotes-prontos sobre o ser
Por fim, me mostrou pelo exemplo ao revés
que sentimentos não se questiona,
se sente apenas, se aceita
nem que seja só para esperar que passem sozinhos.
Sentimento não é cavalo a ser domado,
nem rei autoritário a se submeter.
É algo que se respeita.

A segunda estrela
- êta estrela danada de boa! -
com ela aprendi a compartilhar a vida de verdade
a sonhar junto
a amar o cotidiano junto
Essa Estrela-diamante me contou da pureza e preciosidade do ser humano
e também do choque de duas duras teimosias.
Ah! Como é danado de bom uma entrega pura
que só a pureza de um olhar em sintonia comigo
e os meus dezoito anos
me permitiram!
Essa é uma estrela que brilha grande e sempre
Bonita como é a beleza dos que amam
E, por amar, respeitam e dignificam as buscas do ser amado
de ser cada vez mais o que se é.

A estrela terceira, Estrela-amorosidade
pôs-me em contato com a beleza e a brutalidade
da alma demasiadamente humana.
Ensinou-me a tocar meu corpo e meus sentimentos mais íntimos
a superar o medo de uma entrega apaixonada
curvando-me à incerteza inerente à vida.
Tomada dessa descoberta, senti-me a mulher mais feliz e linda do mundo!
Um dia, desses bem, mas bem nebulosos, ela me chamou num canto
e me segredou que a amorosidade e a fúria,
o cuidado e a extrema negligência
muitas vezes seguem juntinhos num mesmo veleiro.
Essa estrela me fez triste e forte
ao escancarar, sem me deixar saída,
a vulnerabilidade que marca minhas entranhas.
Mas, mostrou a fluidez das água para mim que era toda terra,
e me fez sentir, sentir, sentir... isso não posso negar.

A quarta e última e breve estrela
me foi jogada como se joga resto de poema fora.
Essa Estrela-desapego tem me ensinado a estar só
diz-me em silêncio que é preciso aguardar o tempo das coisas,
sobretudo das minhas coisas-coisinhas-coisões
Essa estrela piquititica me mostrou
que, por grande que sejam os ressentimentos,
peito-de-gente está sempre aberto para ser tocado e tocar
Ali onde não buscamos ou esperamos,
somos surpreendidos por algo
que faz brilhar nossos olhinhos.

Olho-de-gente é para brilhar
brilhar muito
brilhar a perder de vista
brilhar, opacar, brilhar
opacar, opacar, opacar,
mas sempre voltar a brilhar.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Pelas águas


Manhãzinha colorida hoje, fui caminhar na praia
eis que surgiu uma nuvem-chovendo sobre minha cabeça
como nos desenhos animados.
A nuvem desenhisticamente seguiu-me
quando tentei correr.
Encurralada, desisti da resistência
(êta resistência danada que me é tão cara)
Pus-me a seguir saltitante
entre a imensidão de pingos por todos os lados
Cantinho de riso na boca,
mulher das águas que sou.

Quando dei por mim,
tudo amarelo e azul novamente
quiça de todas as cores, e sem embaçar

Não fosse as poças de água
do caminho de casa,
nem haveria vestígio de que chovera forte sobre mim.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Vida e Brutalidade




- Ei, moça, por favor, a senhora me ensina a viver?
Disse a menina que mora em meu peito meio aturdida com o avalanche de acontecimentos dos últimos anos.
- Brutalidade, moça, Brutalidade. Para todo canto que olho, é muita brutalidade. Mas quero viver até a última gota.

E a moça paralisou-se ante a estranheza daquele pedido.

(...)

E todos os fins de tarde desde aquele dia quem vai à praça da cidade nunca deixa de avistar uma mulher e uma menina, meio sujas, de mãos dadas, abordando as pessoas que passam.

- Brutalidade, meu Deus, é muita brutalidade que ninguém vê. Mas, por favor, nos ensina a viver, que ficamos com a vida até a última gota.

O grande medo

O grande medo que tenho
não é o da morte
Temo sobretudo
a vida
--a dor
----o escárnio
------o fracasso
--------o abandono
Temo morrer esquálida
só e amarga
com a bunda numa cadeira
e nos lamentos por tudo que não fiz.
Eu odeio lamentos!

Medo de estar feliz
e não ter por que brigar.
Medo de ser amada
e me perder no prazer que pode ser
um outro ser humano.

Medo, Pânico
de não encontrar um sentido
para essa coisa absurda que é a vida
essa coisa que amo
sobre-todas-as-coisas
e por amá-la tanto, tanto
- e de modo tão profundo-
e por estar eu
ainda toda enodada
sem firmeza nos pés para cuidá-la só
não consigo deixar de temê-la.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Encantos, Estranhezas e Desencontros




Era raro, muito raro aquele ser que paixão despertou em mim. Tão logo vi-me tocada pelo seu encantamento, fui tomada por um desejo visceral de aproximação. Havia uma espécie de comunhão silenciosa, dessas que se dão poucas vezes na vida e termina por superar o medo abissal de tocar o enigma de um outro ser humano, tendo seu próprio enigma tocado. E a cada encontro crescia o desejo de compartilhar desse silêncio, que guardava palavras de preciosa sonoridade. Havia algo de convidativo em seu olhar, e, não sem medo, ousei a aproximação.

Mas no instante em que nos tocamos pela primeira vez, o ser se esvaiu. E era como se meus dedos tocassem uma nuvem resplandecente, tão visível aos olhos quanto impalpável às mãos. E o ser se reconstituiu em sua beleza, mantendo-se sempre presente, porém distante, quase protegido do toque. Esperei uma aproximação, que, se houve, foi demasiado sutil para a intensidade do meu desejo. E se é verdade que aquele primeiro toque deixou um sabor de cintilância, também o é que o olhar agora ambíguo daquele ser, ora convidativo, ora repulsivo, temeroso, não pôde deixar de produzir em mim certa angústia. Arrisquei ainda outras aproximações, um tanto pífias talvez, um tanto atabalhoadas. Mas o mesmo se deu todas as outras vezes em que nos tocamos. Ora ele se esvaía, ora se congelava ou petrificava para se reconstruir, guardada a devida distância.

Comecei a desconfiar que talvez o total desapego fizesse parte da essência daquele ser que, não sei se por azar ou sorte, tocou-me. Que sua beleza, ora tão bruta, ora tão delicada, não estava para ser desfrutada, compartilhada, vivida, pelo menos não comigo.

Não foi sem dor que aceitei que a minha presença poderia lhe ser prejudicial. Não foi sem dor, mas foi com muita coragem, que renunciei ao meu desejo de aproximação para que aquele ser seguisse brilhando, em sua essência, em seu desapego, em sua solidão.

Ainda não compreendi esse seu raro mecanismo de, embora ter me feito sentir tão viva, petrificar, ou congelar ou se esvair ante o contato talvez demasiado intenso da minha pele. Não compreendi, mas creio ser desnecessário compreender para aceitar as pessoas a quem queremos bem, com toda a beleza e estranheza que lhes compõem.

E, assim, também eu libertei-me para seguir só, em minha beleza, em minha estranheza, mantendo acesa essa essência única do humano de desejar que a realidade seja diferente do que é. Essa mesma essência que tanto nos frustra, quanto nos possibilita inventar e reinventar sempre mundos outros onde caibam os nossos desejos.

terça-feira, outubro 30, 2007

Nos labirintos da coragem











Tentando se segurar numa alça lilás
(Marina Colasanti)
Entrou no elevador.
A um canto, outra mulher segurava firme debaixo do braço uma enorme bolsa de couro lilás.
– Que ousadia, uma bolsa lilás – sorriu ela.
– Acabei de dizer a um homem que o amo – respondeu a outra. – Então entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. Eu precisava sentir nas mãos a minha audácia.
Não sorriu. Agarrou-se náufraga na alça.



Sim, sinto que estou pronta. Aprontei-me para sair esta noite, mas parei na porta e decidi ficar. Passei a noite só, tomando licor de gengibre, escutando música daquele tempo sem data. Estive a ler contos, poemas e a dançar sozinha pela minha casa pequena de porta lilás. Pintei as unhas de vinho para registrar nas mãos a minha ousadia. E que júbilo, meu Deus, tomar nas mãos a ousadia!

Sim, acho que estou viva. Ufa! Estou viva! Sei que estou viva, porque vejo meu ventre aberto – da garganta ao peito – e ondas de pulsões se expandem nas vísceras e na pele. Tenho orgulho do meu corpo débil que ousa despertar de sono largo. Orgulho das minhas mãos de artesã, ainda ontem frias, que apanha linha e agulha para coser com muitas cores os retalhos do que fui.

Andei por guerras de espadas, confrontei monstros tantos em sonhos e realidades, debati com autoridades em tribunais. E por onde andei a fabricar idéias a gente se admirou da minha bravura. Eu, no entanto, sempre soube da vulnerabilidade assombrosa que marca meu ventre e me afasta dos meus. E qualquer olhar mais atento veria medo em meus olhos. Veria uma pele, embora suplicante de outras presenças, afastar-se de todos que pudessem tocá-la e tocando-a evocar o desamparo que é dela.

é preciso coragem, muita coragem, para se deixar tocar. Hoje eu me toquei e fui tocada por mãos ainda quase desconhecidas. E isso me fez mais forte. É que a dor do dedo na ferida, por forte que seja, nunca supera o prazer do corpo pulsante. E já não me envergonho mais do corte que trago no ventre.


07/09/2007

domingo, julho 01, 2007

Corpo de vidro



Corpo de Vidro
Vidraça quebrada
Cuidado! Não toque.
Objeto frágil.

Alma de vidro
Cristal delicado
extremamente delicado
Fina taça lançada à parede
em briga de casal
Cuidado! Não grite.
Os animais se assustam.

Vidro que quebra
ameaça quebrar
ante aproximação descuidada
(ou mero sinal)
Rompimento possível.
Rompimento real.

Corpo de vidro
Alma de vidro
Cuidado!
São coisas finas que guardo.
Para mãos delicadas.

Mas toma-me, desfruta-me, afeta-me
sem excesso de pudor
que tenho fome de vida
e estou para ser tocada.

domingo, abril 15, 2007

A Palavra e o Ventre



Ei, moço! Tem uma palavra pedindo para entrar.
Naquele espaço entre a língua e o céu da boca
a palavra se espreguiça, ensaia pôr-se de pé.

Palavra-pensamento
Sentimento-palavra
Palavra que busca forma no impalpável
Palavra-mãe
que põe o ventre no colo
e lhe conta contos para dormir.


Mas o ventre não dorme.
O ventre esperneia
--------- delira em febre
--------- convulsiona
E a palavra, sem poder sair ou entrar
apanha tela, tinha fresca
e fragmentada se autoretrata,
urge expressar-se.


Cansada, a palavra se rende ao silêncio
e o ventre, então, recosta em seu peito.
No peito - palavra sem forma que sonha
o ventre também adormece.


E do encontro no peito do ventre com a palavra
o mundo não sairá mais o mesmo.


terça-feira, novembro 28, 2006

O que quer a borboleta lilás?

escrito em out/2004

O que quer essa borboleta lilás

a passear solitária nesse mundo desfocado?
Vôo suave, perdido
tão distante quanto presente em cada movimento.

E o nosso olhar
atendendo ao convite, quase suplício ou convocação
volta-se inteiro para contemplá-la.

Talvez passeie indiferente
sem indagações ou metafísica.
Talvez esteja a procurar o impossível
só para ter certeza de que nunca precisará pousar.
Mas os pousos nos são inevitáveis.

Seus motivos mais íntimos permanecem intocados
- mesmo por ela, que não os quer
ou não os pode saber.
É que o mundo não está para ser desvelado
e abaixo do pano mágico
só existe uma grande interrogação.
O que temos feito de nós?
E o que quer, afinal, a borboleta
voando impune
a despeito da melancolia que a acompanha
e sem pudor a toca?

O outro

O outro... esse vácuo em silêncio que me devora
O outro... que nos pequenos movimentos cotidianos
me condena de modo tão penetrante quanto sutil
... e ri.
O outro que me acusa, o outro que me desperta,
o outro que me manda plantar batatas
pois não precisa de mim. O outro.
O outro que me requisita quando não quero
ou quando não posso, nauseada que estou.
O outro que me lembra das horas
e dos compromissos que tenho, mas não queria
[são tantos os compromissos]
O outro que me assusta, que temo
sem precisão, com precisão.
O outro de quem preciso com tanta força
que chego a querer esquecer
O outro que não compreende, nem é compreendido
que apreende de modo tão incerto
o dito e o não dito.
O outro que triunfa sobre o desespero dos que não podem
O outro que rejeita as inquietações, as fragilidades,
que reina no império das certezas e da altivez.
O outro que aponta a minha mesquinhês,
a minha insensatez (ou a sensatez indesejada)
que aponta tudo aquilo que não quero
ora a dar-me palmatórias,
ora a fazer troça do que não me faz rir.
O superoutro que faz do eu um solitário
em seu próprio silêncio a devorar-se.

(escrito em fev/2004)

domingo, outubro 29, 2006

Já não tenho mais tempo para querer ser o que não sou.
Agora, sim, começo a viver.

terça-feira, outubro 17, 2006

Carta aos que ficarão


Quando eu morrer, não quero missa ou velório. Quero pássaros cantando pela manhã.

Os que gostam de mim, quero que sintam por um segundo aquilo de mais verdadeiro em si mesmo. E, diante deste prazer maior ao homem permitido, possam sorrir genuinamente.

Proponho medir os anos de uma pessoa pela variedade e intensidade de sua vida. Assim, não importa a idade que tenha ao morrer, seguramente serei velha, tamanha a mistura de cores que vibram em mim.

Quando eu morrer, quero ser jogada na nascente de um rio abundante. Eu, que vim da terra, com a água quero comungar e seguir o fluxo das coisas e desaguar no mar.

Por enquanto eu fico com a vida!

domingo, outubro 08, 2006

Esse estranhamento não passa ...


Serão todos os homens solitários e tristes?
Hoje eu só me sinto capaz de comungar com a dor e a tristeza, embora a alegria queira entrar dentro de mim.


Esse estranhar a mim... como se eu fosse etérea e impalpável e distante de tudo o mais; e a vida cotidiana exigisse um pragmatismo que não me pertence, mas agarro com afinco, somente para me sentir parte. Parte de uma coletividade maior, parte de um outro, parte de mim, parte do que nem sei bem, mas preciso para poder ser. É que o homem para se humanizar precisa se sentir em comunhão com o que quer que seja. Com uma cultura, um sagrado, uma idéia, um modo de ser, um outro homem.

O que serei eu, afinal, que sou incapaz da entrega? Eu, que não comungo com nada? Que me sinto estranha nos lugares mais familiares, sempre que passo o olho por mim? Eu, que volto aos lugares da infância, às pessoas da infância na busca do pertencimento e só o que encontro é a certeza de que algo se quebrou. Ruptura irreparável esta que me afasta dos meus, que me afasta de mim.

Permiti ter a minha alma violentada, entreguei o que guardava de mais precioso em mim para um desconhecido cuidar. Nesta busca desesperada de não me saber só, acreditei conhecer o desconhecido e o deixei adulterar-me.

Agora tento recompor os pedaços daquilo que não mais poderei remontar. E o peso da minha fragilidade, da minha incapacidade de entrega nunca me doeu tanto. Eu pinto máscaras para tornar a vida mais bonita, mas me envergonho de usar as minhas próprias máscaras. Eu, que por medo de escolher, me deixei ser escolhida. Permiti ter a minha essência adulterada pelo primeiro falso-eu que, para salvar-se de coisas que nem sei, me escolheu. Eu, que tanto penso, mal consigo tocar o âmago de mim e das coisas.

E, em meio ao mundo que vibra além de mim, só me restou o peso das escolhas que fiz e daquelas que não pude fazer. Duvido de mim a cada passo que dou. Estranho-me, sabendo não mais poder recuperar-me, adulterada que já estou.

Eu, que salguei a comida do que seria o jantar mais importante da minha vida. Sem haver tempo de postergar o encontro ou preparar algo novo, decido servir bastante água para os convidados. E desculpar-me com cada um, é claro. Mas não consigo perdoar a mim, reconheço em cada pequeno deslize a minha essência adulterada, dano irreparável. Não posso livrar-me da dor de olhar para os outros e ver-me incapaz de comungar com eles do que quer que seja, de olhar para mim e não mais me reconhecer.

sábado, setembro 16, 2006

Quando mudar o que se é parece difícil demais

Hoje eu estou tristinha...

Esse bicho esquisito que tenho por dentro... Que me aperta e me faz refém. Não posso agir senão por sua ordem e dominação. E quando não há ordem, é ainda pior: paralisada fico.
Esse bicho me faz dependente, me põe no colo e, se não há colo, me faz doer. Me lembra das coisas todas que quero ser, mas está tudo tão distante (de mim). Ele vive num buraco enorme cavado dentro de mim, não sei se na perna, no tórax ou no abdomem. Talvez em todos os lugares.
E sempre que me sinto livre e penso que posso fazer de mim o que quiser e olho o universo como uma bola imensa de possibilidades, o bicho futuca o buraco. Então vai subindo aquela sensação que só ao homem é possível. Aquela dor que começa na barriga, se expande pro corpo todo e volta para a barriga novamente, onde se aloja e diz: você é assim. As coisas são assim. E não há nada que possa fazer para ser diferente.
E eu, que nunca vi um cão, ou qualquer outro ser, desejar ser o que não é, fico sem saber se riu ou choro por ser humana. Humana e triste, com um buraco que parece caber o mundo dentro. Eu, que sou tão pequena, me assombro de guardar em mim um buraco tão grande. Me assombro da minha necessidade canina de um homem para cuidar de mim. Me assombro da minha necessidade humana de um outro para dizer quem sou.

sábado, agosto 19, 2006

Solo Feminino


Existe um vazio
que recorda espaços de outrora
Vazio que grita com paixão
no ouvido esquerdo da gente
clamando ao impossível preenchimento

Existe um espaço entre a morte e a criação:
sala branca sem mobília
com restos de cortina velha, poeira,
espelhos por todo lado.
Sala que se fez festa
lambuzou-se de vinho, sonhos tantos
e sexo a noite inteira.
Sala que se fez triste
regada a incertezas, medos, angústias
e portas batidas com força
na cara de quem vem atrás.

Hoje, em silêncio,
assiste a sala com timidez
aos primeiros passos da bailarina
criando uma nova dança

O vazio é aquele espaço
entre o fim e o começo do que vem além.

quinta-feira, agosto 10, 2006


"Porque creo que tan sólo eso puedo ofrecerles: precarios restos de madera"
(Ernesto Sabato, Antes del fim)

Criando fadas em contos
amanheço esplendor
essa parte de mim que quer brilhar.
Rodopio cantigas em samba
antigas memórias de mim,
essa parte que não envelhece.
Pensando no fim,
no momento antes do fim,
anoiteço luz.
E o que era terra
se deságua.
E o que era fogo
se esvai.
Nos escombros de mim
a fé em que não creia:
restos de tábuas
lançados por tantos que nem sabem.
E tateando a noite com os pés
Começamos a madrugar beleza

Quem é Macabéia?



Macabéia é uma mulher com pouco rebuscamento e muitas dores sem lugar de expressão. Datilógrafa em tempos que não se fazem mais máquina de escrever. Sertaneja em chão urbano, numa aceleração que não pode acompanhar. Busca uma alegria não catalogada, um amor que não conhece ou sabe possível, um templo que dê algum sentido à falta de sentido da sua vida. Não tem religião ou amigos, não abraça nenhuma grande causa. Talvez a expressão perfeita da solidão absal que nos toca - a algumas de nós - em algum espaço da vida. Solidão que busca alguma forma para não desmoronar o mundo. Que ensaia um grito, um olhar para fora de si, tentativa alucinada de continuar acreditando na vida, na alegria, nos homens, na arte, na beleza do mundo e no compartilhar como único sentido dessa nossa existência demasiadamente humana.

quarta-feira, junho 14, 2006

Salve a morte da inocência!



Existe um momento na vida de algumas mulheres de extrema delicadeza. Momento de uma tristeza e vazio que parecem não ter tamanho para caber no mundo. Mas um momento que também guarda em si aquela alegria das grandes revelações. É o instante em que se torna possível enxergar o lado mais torpe e desprezível da alma humana. Grande perda da inocência!

Isso pode acontecer numa menina, numa senhora, mas muitas mulheres não chegam a experimentar essa gloriosa morte. O momento pode ser marcado por uma grande tragédia, estupros, torturas, doenças tantas, desencantos intensos. Ou pode simplesmente vir de uma percepção aguçada do mundo, isso para as almas mais sensíveis. Há mulheres que já trazem em si essa morte. E estas, se não se tornam amarguradas, são grandes sábias, capazes de intensas entregas, o que só é verdadeiramente possível quando não se perde nem por um instante o contato com seus desejos, suas possibilidades e os perigos que por ventura se aproximem. São mulheres com chão e faro, como devem ser as mulheres e homens do mundo.

Eu vim de uma família de mulheres inocentes. Até a última geração que tive notícia, todas elas guardavam essa fraqueza. E preferiam fantasiar que o mundo é bom e justo. E preferiam cuidar do mundo para ver se alguém, por compaixão ou reconhecimento, cuidava delas. E negavam a dor, negavam o ódio, a raiva, o ressentimento, tentando crer que poderiam usar a verdade para se proteger da mentira. A inocência é um grande escudo velho, com furos por toda parte, que alguns cavaleiros, por falta de armas novas e mais eficientes, resolvem levar para a batalha, na esperança de ao menos morrerem com alguma dignidade.

Assim me criei e, como as mulheres da minha família, igual a tantas outras, pintei com cuidado e dedicação meu próprio escudo furado da inocência. E me lancei na guerra, pensando ganhar o mundo. E ganhei uma grande dor. Quebrei o ciclo da inocência, que, afinal, precisava ser quebrado em algum ponto para que a vida - com toda a contradição que lhe é inerente - possa retomar seu percurso natural.

E com alegria vislumbro a possibilidade de me unir àquele grupo de mulheres com espada, escudo, chão, faro e muita delicadeza que, apesar da incomensurável dor do luto, comemoram a perda da inocência.