"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

segunda-feira, março 24, 2008

Abstinência, meu bem, abstinência

Deus me tirou o chão essa noite
“Chão não é coisa necessária
para se andar”
Tem gente que voa
gente que nada
se arrasta por qualquer lugar.
Mas eu aqui, nesses dias diminutos,
estremeço, caio e babo
com a falta de chão para pisar.

E como não tem chão que me ampare
vou caindo, caindo sem fim
ante os olhares
tão exigentes, tão condescendentes
tão envergonhados, tão preocupados
comigo.
Cantinho de lágrima
no olho esquerdo.
Que serei de mim
que nos últimos dois anos
não tenho feito outra coisa
senão cair?
Cair, cair sem fim
e tentar me segurar
nos galhos secos que há.

O que eu tive
– patinho feio que sou,
peixe fora d´água –
foi overdose de família
nessa semana santa.

sexta-feira, março 21, 2008

Corpo de papel de seda


Eu me dissolvo em água
me derreto, me enxarco
e às vezes, só às vezes
é possível me enxugar
no pós temporal.
Nas outras, ai... nas outras
não tem peneira, nem filtro
não tem decantação
não tem ciência ou arte que dê jeito.
Eu me dissolvo em água
e não volto nunca mais.

Corpo-própio



O outro me invade o ser
por cada micro-furo
da pele
toma conta de mim inteira
me turbina, me adultera, me recria
como quer, e sem saber.
Me agrando,
me apequeneço
com a grandeza,
a pequenez do outro
E com a saída do outro
tento me reapossar
disso de mim que fui.
Mas para além do espelho
só vejo uma massa
disforme e sem nome de mim.
Que tenho sido eu, afinal?

terça-feira, março 18, 2008

História de uma docilização (ou sobre como sobrevivem certos femininos)

Quero meus demônios de volta!
E é pra já, é pra já que saio a buscá-los
Um por um, rodo os cantos do mundo
mas não desisto se não os reunir, todos
numa grande festa dentro de mim.

Os primeiros demoniozinhos
me foram arrancados com força
Tempo em que eu ainda reagia
"Não! é meu!"
E me debatia, esperneava.
"Deus não dá asa à cobra"
E eu que era cobra e tinha asa
teria que escolher.
Entre o ser e o não-ser
perdi cobra, perdi asa
e nem sei o que me tornei
Eu quero meus demônios de volta!

A brutalidade se sofisticou
"Medida de proteção, minha querida.
Precisamos proteger você e a sociedade
de tamanha periculosidade."
Até hoje não entendi
quem precisava se proteger de quem.
eram eles de mim? eu deles?
eles deles? Ou eu de mim mesma?
Entre desejos e medos,
sedativos falaram mais alto.
Mas quero meus demônios de volta!

"Se não tiver nada agradável para dizer, meu amor,
fique calada ou poderá machucar os outros"
Amor de mãe é de uma sabedoria...
sempre a nos evitar dores futuras.
Melhor obedecer.
E eu, que raramente tinha
"algo agradável para dizer"
me calei, me calei, me calei
até desaprender a falar.
Quero meus demônios de volta!

"Bravo! Bravíssimo!
Ela era tão petulante, tão questionadora
sempre a nos deixar em saia justa.
Mas agora está um primor,
aprendeu a aceitar a autoridade.
Nossos métodos educacionais são de fato um sucesso!"
Quero meus demônios de volta!

"Como você criou essa menina?
Quero que minha filha fique exatamente assim"
"Tão bonitinha, parece uma boneca"
"Tão inteligente, ela vai longe"
Elogios e elogios a me encherem de brio
daqueles que roubaram
ou tomaram com carinho
ou simplesmente aceitaram guardar
um por um, os meus demônios
"Tão legal, tão sensível, tão educada..."
tão, tão, tão, tão
Ah! Quero meus demônios de volta!

Castelos-cativeiros-encantados
desses com jardins, flores e música
para a gente até pensar que está livre
e esquecer de querer saber
o que tem do outro lado do mundo.
Temendo possíveis violências de roubos futuros
e já crendo na possibilidade do exorcismo
pedi, implorei ao primeiro ser que passou
que levasse meus últimos demônios sobreviventes.

"É uma paciente difícil. Muita resistência."
"Entre a obsessão e a histeria,
parece às vezes muito fóbica também"
"Fixação oral forte. E muita rigidez"
"Transtorno de ansiedade, seguro"
"Uma inquietação que não se justifica
por sua história de vida."
"É uma historiazinha desgraçada, vá lá,
mas precisamos produzir resiliência!"
"Tranquilidade, meu bem,
essa angústia diante do mundo
não vai te levar a lugar nenhum.
E ninguém consegue inventar diazepam
para a dor de viver.
Êta cienciazinha atrasada!"
"Seu caso, embora complexo, não é grave.
Nada que incenso, vela, ioga, terapia,
meditação, alimentação saudável,
fé, amor, vontade
e eventualmente um remedinho
não possa dar conta"
Arg! Eu quero meus demônios de volta!

Tristeza não é amargura, já disse Adélia.
Medo não é cuidado.
Compaixão não é amizade, nem amor.
E escrever pode aquietar minha alma
até amanhã de manhã
quando iniciarei minha volta ao mundo
para encontrar cada um dos demônios.
os demoniozinhos-traquinagem
os demônios-desejos, demônios-paixões
esses demônios-transgressões, demônios-artes
hão de aceitar o meu perdão e a maternidade
que não pude reconhecer na hora devida.
Teremos muitas festas e brigas

mas cuidarei deles com meu melhor amor.
Reapossada de vitalidade e força
talvez gargalhe de verdade

ao menos uma vez.
Só por isso já vale a pena
os meus demônios de volta!

Mas hoje, hoje mesmo
eu só quero um chocolate
que aqueça e adoce a minha alma.
A força é uma construção que requer calma
e companhias.
A volta ao mundo em busca dos demônios
pode durar uma vida toda
para essas mulheres docilizadas.
Um banho quente, uma noite de sono gostosa
e a disponibilidade real para o que está por vir.