"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Pequena minha

Hoje, só hoje
quero ser a mais bonita
Ternura e graça
Quero sambar
Um riso brejeiro
um dengo, um chamego
amigos, amores
por todo lugar
Só hoje eu não quero chorar.
Leveza e dourado
poço de água
de água cheirosa
de água quentinha
onde o meu ventre estancado
se encha de cores e possa criar
É hoje, só hoje,
que peço licensa,
que peço passagem
p´ra minha doce pequena
oxum mãe menina
p´ra frente passar.

Preta Velha

Preta, minha preta velha
Mãe pretinha minha
Desce comigo às entranhas
dessa nossa existência.
Se graça faz
o meu medo do escuro
o meu medo assombroso
do escuro
apesar dos tantos anos...
Se velha sou
mas sigo soberba e pueril
a tudo julgar, a tudo querer...
E se a sabedoria sua,
mãe pretinha minha,
eu teimo em não acolher...
Desce comigo esse poço
que tá escuro
que tá gelado
que tá quente demais!
Juro, juro,
é só até eu me acostumar

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Cheiro de esteira


Se o sol ensolarasse
e a lua aluecesse
e tudo o mais
fosse apenas tudo o mais
... ai, meu Deus!
Como seria muito mais simples
essa nossa existência!

Poemeto infantil


Duas casinhas de pedra sem telhado.
Mataram o cachorro que estava com raiva.
Poderia ter sido eu, mas eu não sou cachorro.
Posso ser cachorra, mas cachorro não.
As casas estão na minha varanda
e formigas passeiam por elas
mas não entram.
Portas e janelas de palito de picolé
- quem me dera uma casa assim!
As portas não abrem
e eu não posso entrar
mesmo sendo do tamanho delas.
Meu coração é grande
e não cabe em qualquer lugar.
Cabe, sim, muita gente no meu coração.
Quando fico zangada, expulso todo mundo.
Tem gente que se chateia
e nunca mais quer entrar.
Coração amiudece e se molha todo.
Vixe Maria!
Cresce de novo pra festa recomeçar,
ô coraçãozinho meu!

sábado, fevereiro 07, 2009

Delírio de um futuro breve

Como se me beijassem o ventre
e eu me entregasse toda
ao deleite nosso.
Como se brotassem flores
e flores e flores
do umbigo meu
e minha carne se fizesse doce
se fizesse chama.

Quase como se eu tocasse o amor
e isso me fizesse bela
e isso me abrisse as pernas
para lá de mim.

Gostoso como escutar o silêncio.



quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Corpo em poema

Se eu pudesse escrever meu corpo
talvez fizesse uma poesia satírica.
Dura, estilhaçante, apaixonada.
Cantaria a mágoa e a revolta
daqueles que não têm outra opção
a não ser uma batalha permanente.
E nunca silenciam,

Viria num livro rasgado
cheio de ira pelo cor-de-rosa que foi
e de ansiedade pelas cores que poderá ser.
Algo entre a descoberta e a decreptude
entre um soluço abafado, solitário
e um grito de libertação e encantamento.
Sem a métrica-sofisticação da arte-pela-arte.
Poema de rua, Samba, Cordel
p´ra gente de peito aberto
e olhos que buscam sentidos.
Poema p´ra ser cantado, dançado em roda,
declamado em manifestações.

Ou talvez fosse simplesmente
uma carta de amor à humanidade.
Delicado pedido de aconchego e silêncio.
A busca de um canto no mundo,
miudinho que seja,
onde não seja preciso brigar para ser.
Mãos brincantes. Argila.
Amigos. Amigas. Amores.
Ombro para recostar. Partilha.
Acho que assim seria meu corpoema.


(escrito em 29.11.08)

De mim, saudade.



Ontem quase queimei todas as cartas
da caixa azul
do alto do armário.
Mas antes de queimá-las
ousei abri-las
e lê-las.
Fiquei com elas.
De mim, saudade.

Pétalas de flores
dum tempo em que eu era capaz
de guardar pétalas de flores
com bilhetes e ingressos de festivais.
De mim, saudade.

É verão, a cidade sorri
enquanto eu me acinzento.

Ela me olhou
e me desmontou toda
quando mostrava, quase sem mostrar,
a janela, o samba, a rosa
quando me dizia, quase sem dizer,
que a vida tem muitas cores
e pede mais.

Então ela saiu, quase sem sair.
A janela para abrir.
Tantas coisas por pintar.
E eu, num medo danado,
debaixo do cobertor.
Com saudade do que fui
e do que nem cheguei a ser.
De mim, saudade.