"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

terça-feira, outubro 30, 2007

Nos labirintos da coragem











Tentando se segurar numa alça lilás
(Marina Colasanti)
Entrou no elevador.
A um canto, outra mulher segurava firme debaixo do braço uma enorme bolsa de couro lilás.
– Que ousadia, uma bolsa lilás – sorriu ela.
– Acabei de dizer a um homem que o amo – respondeu a outra. – Então entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. Eu precisava sentir nas mãos a minha audácia.
Não sorriu. Agarrou-se náufraga na alça.



Sim, sinto que estou pronta. Aprontei-me para sair esta noite, mas parei na porta e decidi ficar. Passei a noite só, tomando licor de gengibre, escutando música daquele tempo sem data. Estive a ler contos, poemas e a dançar sozinha pela minha casa pequena de porta lilás. Pintei as unhas de vinho para registrar nas mãos a minha ousadia. E que júbilo, meu Deus, tomar nas mãos a ousadia!

Sim, acho que estou viva. Ufa! Estou viva! Sei que estou viva, porque vejo meu ventre aberto – da garganta ao peito – e ondas de pulsões se expandem nas vísceras e na pele. Tenho orgulho do meu corpo débil que ousa despertar de sono largo. Orgulho das minhas mãos de artesã, ainda ontem frias, que apanha linha e agulha para coser com muitas cores os retalhos do que fui.

Andei por guerras de espadas, confrontei monstros tantos em sonhos e realidades, debati com autoridades em tribunais. E por onde andei a fabricar idéias a gente se admirou da minha bravura. Eu, no entanto, sempre soube da vulnerabilidade assombrosa que marca meu ventre e me afasta dos meus. E qualquer olhar mais atento veria medo em meus olhos. Veria uma pele, embora suplicante de outras presenças, afastar-se de todos que pudessem tocá-la e tocando-a evocar o desamparo que é dela.

é preciso coragem, muita coragem, para se deixar tocar. Hoje eu me toquei e fui tocada por mãos ainda quase desconhecidas. E isso me fez mais forte. É que a dor do dedo na ferida, por forte que seja, nunca supera o prazer do corpo pulsante. E já não me envergonho mais do corte que trago no ventre.


07/09/2007