"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

terça-feira, novembro 28, 2006

O que quer a borboleta lilás?

escrito em out/2004

O que quer essa borboleta lilás

a passear solitária nesse mundo desfocado?
Vôo suave, perdido
tão distante quanto presente em cada movimento.

E o nosso olhar
atendendo ao convite, quase suplício ou convocação
volta-se inteiro para contemplá-la.

Talvez passeie indiferente
sem indagações ou metafísica.
Talvez esteja a procurar o impossível
só para ter certeza de que nunca precisará pousar.
Mas os pousos nos são inevitáveis.

Seus motivos mais íntimos permanecem intocados
- mesmo por ela, que não os quer
ou não os pode saber.
É que o mundo não está para ser desvelado
e abaixo do pano mágico
só existe uma grande interrogação.
O que temos feito de nós?
E o que quer, afinal, a borboleta
voando impune
a despeito da melancolia que a acompanha
e sem pudor a toca?

O outro

O outro... esse vácuo em silêncio que me devora
O outro... que nos pequenos movimentos cotidianos
me condena de modo tão penetrante quanto sutil
... e ri.
O outro que me acusa, o outro que me desperta,
o outro que me manda plantar batatas
pois não precisa de mim. O outro.
O outro que me requisita quando não quero
ou quando não posso, nauseada que estou.
O outro que me lembra das horas
e dos compromissos que tenho, mas não queria
[são tantos os compromissos]
O outro que me assusta, que temo
sem precisão, com precisão.
O outro de quem preciso com tanta força
que chego a querer esquecer
O outro que não compreende, nem é compreendido
que apreende de modo tão incerto
o dito e o não dito.
O outro que triunfa sobre o desespero dos que não podem
O outro que rejeita as inquietações, as fragilidades,
que reina no império das certezas e da altivez.
O outro que aponta a minha mesquinhês,
a minha insensatez (ou a sensatez indesejada)
que aponta tudo aquilo que não quero
ora a dar-me palmatórias,
ora a fazer troça do que não me faz rir.
O superoutro que faz do eu um solitário
em seu próprio silêncio a devorar-se.

(escrito em fev/2004)