"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

quarta-feira, junho 14, 2006

Salve a morte da inocência!



Existe um momento na vida de algumas mulheres de extrema delicadeza. Momento de uma tristeza e vazio que parecem não ter tamanho para caber no mundo. Mas um momento que também guarda em si aquela alegria das grandes revelações. É o instante em que se torna possível enxergar o lado mais torpe e desprezível da alma humana. Grande perda da inocência!

Isso pode acontecer numa menina, numa senhora, mas muitas mulheres não chegam a experimentar essa gloriosa morte. O momento pode ser marcado por uma grande tragédia, estupros, torturas, doenças tantas, desencantos intensos. Ou pode simplesmente vir de uma percepção aguçada do mundo, isso para as almas mais sensíveis. Há mulheres que já trazem em si essa morte. E estas, se não se tornam amarguradas, são grandes sábias, capazes de intensas entregas, o que só é verdadeiramente possível quando não se perde nem por um instante o contato com seus desejos, suas possibilidades e os perigos que por ventura se aproximem. São mulheres com chão e faro, como devem ser as mulheres e homens do mundo.

Eu vim de uma família de mulheres inocentes. Até a última geração que tive notícia, todas elas guardavam essa fraqueza. E preferiam fantasiar que o mundo é bom e justo. E preferiam cuidar do mundo para ver se alguém, por compaixão ou reconhecimento, cuidava delas. E negavam a dor, negavam o ódio, a raiva, o ressentimento, tentando crer que poderiam usar a verdade para se proteger da mentira. A inocência é um grande escudo velho, com furos por toda parte, que alguns cavaleiros, por falta de armas novas e mais eficientes, resolvem levar para a batalha, na esperança de ao menos morrerem com alguma dignidade.

Assim me criei e, como as mulheres da minha família, igual a tantas outras, pintei com cuidado e dedicação meu próprio escudo furado da inocência. E me lancei na guerra, pensando ganhar o mundo. E ganhei uma grande dor. Quebrei o ciclo da inocência, que, afinal, precisava ser quebrado em algum ponto para que a vida - com toda a contradição que lhe é inerente - possa retomar seu percurso natural.

E com alegria vislumbro a possibilidade de me unir àquele grupo de mulheres com espada, escudo, chão, faro e muita delicadeza que, apesar da incomensurável dor do luto, comemoram a perda da inocência.

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