"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos" Manoel de Barros

domingo, outubro 19, 2008

A Política e a Poética


Eram gêmeas. Siamesas. Mas de um modo jamais visto. Na verdade não se sabia se ali havia um par de pernas que se bifurcavam em dois troncos, quatro braços e duas cabeças ou se as duas cabeças compartilhavam as mesmas pernas. Também não era possível saber qual das cabeças era a verdadeira dona, a dona primária, das pernas e qual era a intrusa. As duas enviavam mensagens, comandos às pernas, às vezes na mesma hora. E as pernas, ah, as pernas ficavam tão perturbadas com isso que chegavam a agir por comando próprio, o que inquietava por demais as cabeças.

Bom, a confusão começou porque as duas cabeças eram completamente diferentes uma da outra. E quase sempre não havia jeito de entrarem em acordo. A da esquerda pensava, pensava e pensava. E por isso achava que estava sempre mais certa que a outra. Sabia exatamente o que queria, era firme e enfática, por vezes dura. Para tudo tinha explicações, argumentos tão bem delineados que convenciam mesmo. E não fugia dos embates. A da direita, ah, esta era mais doce, quase infantil, buscava cantinhos silenciosos e gente amiga. Havia dias em que ela acordava tristonha sem nenhum motivo e se punha a chorar, chorar, escrever coisas sem utilidade alguma para ela ou para a humanidade. Isso deixava a da esquerda possessa, irritadíssima. Não há tempo a perder com futilidades e coisas sobre as quais não temos qualquer poder! Mas a da direita não se importava com essa questão e ficava ofendida, com muita raiva da da esquerda, que não respeitava o seu tempo.

E assim viveram durante anos. Havia quem dissesse que não sobreviveriam por muito tempo. Seria preciso cortar uma das duas cabeças para que a outra pudesse viver – disseram os médicos. Mas ninguém, ninguém mesmo, tinha coragem de definir qual seria morta e qual sobreviveria. E assim elas foram vivendo. Elas, ou ela, porque ninguém sabia se deveria usar o singular ou o plural para se referir àquela criatura. As duas cabeças brigavam, brigavam, e era terrível, porque não podiam se separar nem por um minuto para esperar ficar tudo bem novamente. E o par de pernas, às vezes, sapateava sozinho da direita à esquerda à direita à esquerda até cansar, cambalear e cair no chão. Chega! – gritava. E ia pra frente, pra trás, pra qualquer lugar por sua conta e risco. Corria, corria, corria para não dar tempo das cabeças se intrometerem e quererem assumir o comando.

Sei que já beirava – ou beiravam – os trinta quando decidiu – ou decidiram – que daquele jeito não dava. Todos os sábios, os reis e os curadores da região foram convidados a propor uma solução para esse problema. "Haverá uma grande roda, todos serão ouvidos e dali ninguém sai sem que sejam tomadas as devidas providências". Não houve quem não aceitasse o convite. Teve gente que veio de longe só para a ocasião. Teve gente que, julgando-se sábio, ou rei, ou curador, ficou ofendida por não ser convidada.

O fato é que a roda será amanhã. Começará uma hora após o nascer do sol no morro mais alto, à beira do rio mais cristalino já encontrado naquelas bandas. E hoje, hoje o par de pernas e as duas cabeças foram se deitar cedo. A Política, da esquerda, pôs-se a ler um livro enorme, Tratado sobre o direito dos homens e das mulheres, e a formular argumentos, pois era assim que ela se encontrava. A Poética, da direita, preferiu passar a noite escutando cirandas, porque assim alcançava o silêncio de que precisava em noite tão especial. As pernas adormeceram rapidinho e nem se moviam. A da direita não gostava nada, nada daquele livro pesadíssimo, inquietante, pois sabia que as respostas essenciais não são encontradas em livros, muito menos nos daquele porte. A da esquerda achava enfadonha aquela música repetitiva e a letargia da da direita, porque lhe angustiava em demasia todas as coisas do mundo que eram muito pior do que poderiam ou deveriam ser e sabia que precisava, com urgência, fazer algo de outro modo.

Mas dessa vez elas se olharam com ternura. Desejaram-se boa noite com um beijo, viraram-se cada qual para o seu lado. E essa noite não houve briga.

Da Intuição


Desde menina
nas andanças em terraços,
playgroudings e terrenos baldios
aprendi a desconfiar de sentimento.
Coisa esquisita essa!
Sempre nos leva aos lugares-comuns
conhecidos e indesejáveis.
Há que pô-lo em questão.
Dissecá-lo. Decifrá-lo. Digeri-lo.
Sentimento é coisa forte.
Ressurge dos buracos mais inusitados
E nos corta os braços,
ferve o rosto,
bambeia as pernas.
Mas se fecho os olhos,
deixo-me inundar em suas palpitações,
mistérios sem respostas.
E se depois olho adiante,
tomo os retalhos na mão
para tecer o curso por onde vou.
Então sentimento é bicho amigo
e às vezes há que escutá-lo
e calar, e calar, e calar.
Para saber de verdade por onde ir.
Assim me contou um passarinho.

sábado, outubro 04, 2008

Da existência




Um espantalho passou por mim ontem à tarde
e balançou minhas estribeiras.
Achou muita graça de mim,
que buscava a perfeição.
Achou graça do desprezo que eu tinha
pelas coisas precárias do mundo.
Gargalhadas de compaixão
e fui ficando pequena, pequenininha.
Cruzei a pista para não vê-lo.
Que audácia, esse espantalho!
Fazer graça de mim que a ninguém incomodo!
Sei que passei a noite todinha
sonhando com o danado,
que ria e se balançava,
todo palha que era.
Depois me pôs no colo
contou histórias de aventura
do tempo que o Brasil nem era Brasil.
Era velho o espantalho, sabia das coisas.
Brincamos de capitão, roda, amarelinha,
cantamos também e foi gostoso demais.
Quando acordei, e vi que era sonho,
voltei à ruela onde nos encontramos.
Faz horas que espero por ele
com saudade do ruidinho da sua risada
com vontade de brincar com o precário
e tornar tudo grande, e tornar tudo bonito.
Faz horas e ficarei até o fim do dia
ou até que ele venha...
até que ele venha.

Seria tristeza?



E se há vazio em mim
Crio, Invento, Inverto
Faço-me bonita, mais
e rio.
Há água nos olhos?
Banho-me inteira
na terra baldia
detrás de casa.
Faço-me dura, firme,
cheia de idéias-verdades
Visto-me em jornais e trapos,
mas altiva
e danço
.

RESISTÊNCIA



Não há motivo para preocupações:
nunca seremos mais do que podemos.
Nem menos.
A vida segue na velocidade da luz
E algo aqui dentro resiste, não vai
afirma sua corporeidade.
Dai-me fluidez, dança e beleza
apesar de.
Dai-me acolhida -
Falta colchão, morada e flor
à precariedade que tenho sido
às ruínas-sem-trato que somos nós.
Às vezes, confesso, não entendo, meu Deus,
que diabos dá nessa mulher
para ainda assim pulsar tanto desejo.